sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Pascoal e a Terra

"Nunca ouviste passar o vento. 
O vento só fala do vento. 
O que lhe ouviste foi mentira, 
E a mentira está em ti." 


Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema X" 


  O Pascoal era só mais um filho da Terra, tão vulgar ou especial como os pilares que sustentam as abóbadas altas das casas brancas ou como as mimosas e olhinhos-de-mel que salpicam a charneca.
Ser único na Terra é ser todos e por isso mesmo o Pascoal não era um gaiato diferente dos outros, o jeito para a bola, o mesmo; os dedos das mãos contados não davam mais nem menos que os dos seus companheiros.

  No entanto e apesar da felicidade geral que os da Terra sentem ao afirmar-se unos ou só mais um para fazer o todo, o Pascoal tinha um andar, um ar de quem se importava com estas coisas. E de quem importava mais do que todas as coisas.

  A facilitar, tinha na avó Roberta uma motivação como se vêem poucas, para seguir de calcanhares bem firmes no chão e nariz levantado no ar, bem acima dos demais. Os seus pais tinham umas terras, coisa pouca, uma azeitona para o lagar, dois ou três porcos, um nadinha de horta. Pais já quando a esperança de o ser se acabara, tinham tomado o ofício de caseiros na Quinta Nova e trazia-se pois o menino criado com requintes de fidalgo pela avó, velha como as entranhas da Terra, nas ruas da aldeia, seu palácio.

  Os pés cresceram em sapato, a gola dos casacos o taparam da chuva e do frio e sempre a velha Roberta tinha para ele no seu regresso da escola ou da vadiagem, uns brinhóis acabadinhos de fritar, um caldinho de galinha quente com os pequenos ovos cozidos a emergirem na tigela de barro ou ainda uns bolinhos fintos com licor de poejo que "um dia não são dias e o menino tem de se criar". Na venda do Carrasquinho se a viam entrar, já se sabia que ninguém de lá saía sem ouvir bem a história do seu príncipe, um pequeno milagre que Deus ou as artes mágicas lhe entregaram para que fizesse dele um homem. Mas não um homem qualquer. Qual! O seu Pascoal, nascido que foi no Domingo de Ramos se não se estava mesmo a ver, que estavam para ele guardadas grandes coisas na Terra. As comadres riam-se e encolhiam os ombros. A Ti Ana do Paulino de uma vez bem se apoquentou com ela eram os netos anda uns fedelhos de cueiros. Tudo por modo de um comentário da velha Roberta ao neto da outra pobrezinho, que lhe parecia um enfezado, as pernas umas caninhas, quando comparado com o seu Pascoal, um rapagaço, de andar firme e olhar decidido.

  O moço por sua vez cresceu mesmo em imponência, ombros largos, voz rouca, aos treze anos apresentava já os primeiros sinais do que viria a ser um bigode escuro, cerrado sem o qual nunca mais foi visto, moda rara nestas partes da Terra. Na escola, Dona Lurdes tratava-o nas palminhas. Muito possivelmente seduzida pelas alcofas cheias de morcelas e cacholeiras, melões e tomates maduros e um punhadito ou outro de feijão meloal que a velha Roberta lhe fazia chegar de ora em quando pela porta do quintal da casa de professora.

  Não que fosse mandrião ou que tivesse pouca inclinação para aprender, o Pascoal impacientava-se antes com o tempo que passava sentado atrás da carteira, imóvel, quando o que mais queria era andar pelas ruas a mostrar as suas botas novas, toc-toc-toc, no chão asfaltado do largo, ou a correr em direcção à ribeira e de lá pescar o maior achigã que pudesse para vir exibi-lo depois aos companheiros, aos vizinhos, a toda a gente.

  O Pascoal era corpo, era ímpeto, um furacão. Por isso mesmo não seria de estranhar que o Pascoal escolhesse uma mulher à altura, chegada a hora de arranjar namoro. Pois nisso, o Pascoal foi mais longe que qualquer um na Terra ou nas terras fora dela. A Lídia era a filha de um caixeiro-viajante. O pai vendia tarecos, panelas, tachos, facas, copos de latão, numa carroça de terra em terra, sem terra que fosse sua. Conheceram-se na Aldeia do Meio em Junho quando o Pascoal foi para lá desafiado para uma caçada. A Lídia estava montada numa carroça a apregoar tudo o que o seu pai, doente e afónico, já não conseguia vender sozinho. Vestia mal, roupa um pouco sovada do uso, cabelo mal amanhado, não havia vaidades na hora de trabalhar. Só que para o Pascoal lá da Terra, foi como ver o rosto de Deus, O pescoço alto, fino, as pernas longas sob a saia arregaçada, a trança desfeita, mechas de cabelo forte, ruivo a encaracolar por fora da fita, um retrato que fazia de Lídia um espaço inteiro, sem vazios a ocupar o Pascoal por completo.

  Na Terra não se falava de outra coisa: o portentoso Pascoal, benção do Domingo de Ramos, fugira com a filha do caixeirinho. Não havendo desfeita nisso, riem-se no entanto os homens, cochicham as mulheres: quanto mais alto se sobe...
E a Terra é dura. Implacável. Regressam a ela todos os que são dela.

  A velha Roberta emudeceu. O dia fez-se noite e enquanto fervia umas sopinhas de tomate com batatas na panela de ferro junto ao lume, pôs-se a cismar no triste destino que pôs afinal o seu Pascoal no mais comum dos trilhos da Terra. Caiu de borco ali mesmo e nunca mais voltou a falar. A filha recolheu-a na sua casa e o casamento lá acabou por se fazer. Todos se conformaram e a Terra engoliu a grandeza do Pascoal. Deu-lhe a vida não de um, mas de todos os que a habitam.

  Afinal, quem na Terra não teve o seu destino ditado pelo Amor?
Credits: Henk Heijmans in Pinterest