segunda-feira, 15 de setembro de 2014

O Sonho e a Terra

"(...) Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança."

António Gedeão In Movimento Perpétuo, 1956



Recomenda-se aos da Terra que deixem os sonhos para de noite, para quando estes não são controláveis pela mão do Homem e nem pelas muitas mulheres que O habitam. Sem intervenção, não podem haver encargos, mais culpas numa tradição já longa delas e doutros pecados que por aqui se expiam em vidas, a vida toda. 

Com os olhos fechados não se pode dizer que se viu ou sentiu. Os olhos que são o espelho das almas e o reflexo do mundo, só podem ser responsáveis pelo que trazem para dentro do corpo ou para o círculo imaterial que rodeia os homens. Com aqueles fora de serviço, a obra que passa a processar-se dentro dos cérebros e dos corações não pode ser senão divina. Ou inexplicável. O que para os da Terra é uma única coisa. 

Um menino fecha os olhos, cansados, lassos. Encerra por momentos o ciclo de correrias, saltos ao arco e à dianteira, de puxões nos cabelos das raparigas, de jogo da bola e touradas fingidas. Não consegue resistir nem mais um momento ao selamento doce e pacífico das pálpebras, ao amolecimento dos membros por cima da enxerga dura. Assim que o faz, entra logo a sonhar e o descanso só durou o tempo necessário para que passasse de um estado ao outro, como é esperado na sua idade.

Idade que ninguém sabe qual é e que pouco importa, que na Terra a diferença entre gaiatos e homens são só os cueiros. Em tudo o mais, os novos têm que igualar os velhos e não há velho que não dê em menino nos arremessos da vontade e nos retrocessos da vida.

Sonha pois, com a idade que os seus sonhos determinam que tem. Só esses, películas silenciosas, retratos tão mudos como os que se exibem em cima da cómoda do quarto, denunciam os anos que passaram ou não no coração de onde eles nascem. As imagens que cruzam os impulsos energéticos, que entrecortam o bater de cada pálpebra, são segredo, histórias que não se contam pelo timbre da voz acordada.

Nem a Pai, nem a Mãe. A nenhum ser da Terra, nem desta nem de nenhuma outra. São vida vivida no avesso de cada um. São força motora de pernas e braços que se juntam para andarem para a frente em sonhos de olhos abertos.

                                                        (Ao F. Para não se esquecer de sonhar.)

Imagem: http://www.top10films.co.uk/archives/15980