segunda-feira, 5 de julho de 2021

Terra Estio

     A Terra é bocado quente e duro de chão rebentando pelo meio da urze agreste e das papoilas bravias.

    Cheira a seco - e quem é da Terra ou para lá caminha sabe a que cheira a secura-: a torrões empedernidos; a palhas quebradiças voando por cima das cabeças; ao ar quente, tremeluzente como um arrepio de calor no horizonte e ao estrume acumulado, quente e rijo, na beira dos campos lavrados.

    Na Terra o Verão é coroado de cegonhas vigiando os céus, perscrutando o horizonte largo em busca de uma altura que seja, em caminhos tão rasos. Para nela lhe porem casa, ninho esplêndido de feno e galhos, altar dos que podem voar. Os ventos do Estio trazem poeira que cobre a pele e lhe criam uma camada adicional de deserto, impregnada de óleos e aromas de outras paragens a sul que são feitas da mesma massa.

    Abra-se a porta na Terra e imediatamente cheira a barro das cantarinhas; cheira às uvas da alpendorada secando ao sol inclemente; à tijoleira do chão e à soalheira da porta lavadas com água e sabão amarelo, esfregado de joelhos com escovas e unhas num delírio estival das mulheres que das portas para dentro, fazem dele o adro dos seus templos.

    Sente-se o fresco debaixo dos tetos altos e encontra-se a paz, o silêncio, o desespero, por entre essas grossas paredes. Algumas ainda se as esventrarem, as encontram de taipa e adobe de tempos de que ninguém se lembra.

    Aqui nasceu o "de sol a sol" e a "calma". Aqui se veem morrer os que repousaram de vez após uma última tarde de sesta.

    No ar uma tonalidade branca e amarela queima a vista até cair em doces roxos metálicos, em fofos algodões de nuvens estrangeiras cor das laranjas velhas ou dos aloendros, até que sejam pintados por uma trincha invisível do preto-luto das noites frias que confundem a gente.

    Não há horas na Terra, há o tempo: o tempo de acordar; o tempo de calçar as botas; encher as taleigas e os almudes e o tempo de se fazer estrada, para depois vir o tempo do trabalho; a jorna; a calma; o regresso; o tempo do cante e das cantigas ao desafio; dos bailes na eira e na Sociedade Recreativa; o tempo de casar; de ter filhos e de os perder; o tempo de ir e vir e o tempo de voltar.

    Na Terra sobem-se aos montículos de solo árido e diz-se que "lá do alto" se vê o mundo todo. Deita-se a cabeça no travesseiro e sonha-se com o aroma fragrante das maçãs da Feira de Agosto ou com o rebordo florido de uma saia de algodão que nunca chega.

    Rodopia o ar em magnetismos quentes e vê-se um mar que aqui ninguém se lembra de alguma vez ter tido água. Caminha-se esbraseado e por mais que se ande nunca se chega.

    Os caminhos da Terra desdobram-se debaixo do sol. Queimam com ele, espelham o céu aberto nos estreitos ribeiros, deitam-se resignados sob os raios do Astro Rei. A Terra roda e move-se sobre si mesma e em volta dele para na mudança, voltar a ser quem é.

in: http://ricardozambujofotografia.com/home/ 

https://www.youtube.com/watch?v=zIWVXI8BTlw


sábado, 18 de julho de 2020

O Astro e a Terra

    O círculo é antigo e rege-se ininterruptamente pelo Astro: a Terra dá e a Terra tira. 
Levanta-se o sol sobre as cabeças dos de cá para um dia lhes dar leito e descanso eterno nas entranhas da Terra.
Caminham os homens debaixo dele em busca dos trabalhos, das pedras para levantar, do chão para lavrar, das estradas por onde partem e voltam sempre, em contínuo movimento de ir e vir para vida tão curta.


    Caminham as mulheres protegidas dele debaixo dos lenços , dos xailes pesados, dos mantos das vergonhas a que o mundo as obriga. Do sol se retiram os dias de Invernos frios com luz branca, cheiro a lume cruzando em fios de fumo o céu metalizado, carregado de nimbos, assustando os da Terra.
Do sol se retiram as manhãs frescas, de cheiro a sabão, erva fresca estalando sob os pés, boninas salpicando os campos como gotas de orvalho primaveril.


    Do sol também se retiram os horizontes trémulos, a terra seca em torrões, quase pedra, o odor do estrume e das palhas secas, a bênção de um ribeiro quase seco a alimentar os da Terra no Verão inclemente.
Do sol se retiram os dias calmos, plenos, seguros, de fins de tarde frios. Dias em trabalhos, a salvaguarda de outros piores que virão, as cores douradas e os rastos de aromas quentes das panelas de ferro ao lume cozinhando o Outono num fogo lento.


    Somos da Terra e logo, somos do sol. Dos elementos. Até ao céu da noite chamamos "o Astro" e ao calor "a calma". Respeito à imensidão: sabemos bem que nada somos debaixo do sol e que o vagar é preciso para que se faça dele um aliado.


    Aquecem os corações dos da Terra ao despontarem os primeiros raios de sol: chegou um amigo! Caminhamos com ele.


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segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Outono na Terra

  Na Terra o Outono doura pouco. Não há boulevards europeias flanqueadas de árvores centenárias perdendo vigor, entregando cor aos passeios povoados de gente.
A Terra é ela própria um tapete de cores, uma rica manta de retalhos com raízes milenares a querer pouco saber de enfeites. O chão cobre-se de azeitonas que caem como berlindes gordos e escuros das oliveiras; enche-se de ribeiros improvisados nas valas ainda pouco profundas dos caminhos antes ressequidos pelo braseiro estival, solos de sulcos marcados, rasgos cruzando uma superfície seca e rugosa como o rosto das velhas.

  Não adormece a Terra no Outono, prepara-se antes para viver, agora que há fartura e que a água vem benzer os de cá e o que os rodeia. Oferece-lhes farfalhudas couves, opulentas laranjas, bagulhentas romãs, boletas saltando à frente dos pés na beira dos caminhos.

  A Terra guardou-se, noiva ansiosa mas discreta, para os primeiros ares de frio a varrer as casas brancas baixinhas, de soleiras lavadas pelas gotas da cacimba. De Verão era caseira esta Terra. Escondia-se virginal, dentro das grossas paredes caiadas sem janelas que não fossem postigos para enxotar o calor. Deixou a timidez nos meses quentes e veio fazer-se farta, colorida, mais viva que nunca no Outono que lhe devolveu a vida. Que a emprenha de frutos, água, sonhos a renovarem-se e uma esperança ténue mas firme de que com o virar do ano, a vida muda, a jorna encurta, a Terra se renova.

  Vê-se já bem perto, na fímbria delicada dos dias pequenos, o fumo que sai da chaminé de todas as casas alvas, cheiro de morcela ou chouriça a assar nas brasas, a chocolateira a fazer-lhe companhia dando sinal de vida no borbulhar do café negro cujo odor já se vai espalhando e confundindo com o da família.

  Não conhece a moda das cidades esta Terra. Está bem assim. Chegam-lhe novas de céus distantes, dizem que há mar no Norte e aviões que voam 24 horas e não vêem o mundo acabar. A Terra aconchega-se.
Bateu bolo, amassou pão, casou as raparigas. Fechou-lhes delicadamente a porta e deixou-as entrar em casa de braço dado com aquele homem novo que é um par de braços que a amparem até ao fim do ciclo. Benzeu-lhes a porta. Sentou-se ao lume e deixou que o Outono viesse.

  Passo a passo, uma brisa de cada vez, ao longe os últimos pássaros ecoam em despedidas. Preparou-se tudo e a Terra está como a deixaram e nunca mais a mesma. É este o consolo dos que nela vivem: o sentimento de que o mundo gira e encaixa cabendo todo nas ruas da Terra.


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segunda-feira, 23 de julho de 2018

Antónia e os seus meninos

  A Antónia queria muito aos seus meninos. Criava-os a mel e sopas de leite. Fazia rendinhas para rematar as golas e as bainhas dos vestidos das meninas, passava goma nas camisas que os meninos haveriam de usar na missa ao domingo.
Antes de dormirem, preparava água morna para lhes lavar os pézinhos delicados, os dedos gordinhos, punha-lhes pó de talco nas preguinhas do pescoço e das pernas. Cheirava-os, penteava-lhes os cabelos. Cem escovadelas pelo menos em cada uma das meninas. Uma trança grande a pender das costas de cada uma delas. 

  Os lençóis estavam brancos, imaculados, corados ao sol da Terra. O da manhã apenas porque o do meio dia fazia-lhes manchas amarelas e isso seria impensável. 
Engraxava os botins, encerava-lhes os atacadores para que fizessem um laço direito. Costurava, cerzia, calções, vestidos, camisas, lencinhos com as iniciais de cada um. Entre as dobras da roupa nas gavetas, colocava raminhos de alfazema nas das meninas e de rosmaninho no dos meninos. Não os deixava ir para a escola sem verificar bem o comprimento e a higiene das unhas , o asseio da roupa, o brilho dos sapatos: era o que mais faltaria, os seus meninos em desalinho! O falatório que não seria!

  Subia cedo antes do romper do dia às courelas do monte para ir buscar o leite mais fresco ou um queijinho atabafado, envolto em mil cuidados, para o pequeno almoço.
Se lhes subia alguma febre, já não dormia a Antónia. Noites a fio de olhos esbugalhados pousados no sono ardente do seu menino ou na testa em chamas da sua menina.
Ninguém na Terra os via pela hora da calma. Queriam-se branquinhos e sem mancha os seus meninos. Segurava-os pela mão até que aprendessem os primeiros passinhos, carregava-os ao colo para que não os incomodassem as terras barrentas, os cascalhinhos da estrada, as caganitas de ovelha.
Benzia-os à lua, mandava rezar novenas quando os via aflitos.

  Fez-se velha a Antónia, mais velha que a Terra toda, que o círculo longínquo das planícies e dos olivais ao longe, na espera constante pelo regresso de alguns dos seus meninos.
Foram indo para a cidade uns, para o estrangeiro outros e a Antónia ficou, segurando as paredes do monte, mandando caiar, podar, amanhar tudo todos os anos não fosse algum dos meninos entrar-lhe pela porta dentro de surpresa, matar-lhe as saudades que a matavam.

  Não a puderam salvar os seus próprios filhos. Eram para lá de meia dúzia, criados a fome e a ausência pela avó, uma comadre ou uma vizinha. Batiam-se nus e descalços pelas côdeas dos bolos na Travessa do Forno, traseiras da padaria. Morreram dois de barriga inchada de ar ou de maleita a que não procurou dar nome.
Escola se a conheceram alguns foi pela mão da Mestra que os atraía com a promessa de um naco de pão e uma malgazinha de leite.

  Também eles se foram, um após o outro: casaram, fizeram outros meninos que juraram, iriam ter mais sorte do que eles, filhos esquecidos de uma mãe que não usava o título entre a sua gente. 
No dia em que a encontrou o Zé da Inácia que por sua ordem, ia ao monte de duas em duas semanas para cuidar da horta e dos jardins, mandou que se avisasse uma filha, a mais novinha que por ali ficou por se ter casado com o viúvo dono da mercearia (promessa de sustento?).

  Logo a notícia se espalhou como um rastilho pelo sangue dos da Antónia. Vieram sem rendas, golas engomadas ou sapatos engraxados. Vinham sem saber bem a que vinham ou quem iam encontrar naquela caixa de madeira comprida que colocaram no centro da casa que lhes diziam ser a sua. Mas não conhece casa quem não encontrou o calor no colo da sua mãe.

  Dos seus meninos bonitos, todos engenheiros, doutores, bem casadas, gente graúda da Terra mas há tanto fora dela, nem o vento ouviu falar. "Finou-se a criada, Deus a tenha!" disse a matrona, lá longe numa cadeira perto do mar.
Os filhos esses, choraram de rijo, fizeram exéquias, assumiram um luto negro fechado como se deve a um parente. 

  Pois na Terra o sangue é como um ribeiro no seu caminho: salta obstáculos e desvia-se muitas vezes, mas acaba sempre por juntar-se ao leito. 
in https://www.facebook.com/RicardoZambujoFotografia/

segunda-feira, 5 de março de 2018

Sentar na Terra


 "Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo

E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado (...)"

                             Chico Buarque, Construção

 Sentar na Terra é acomodar o corpo para as longas esperas, os calores infinitos, a lentidão dos ponteiros e o rumor do silêncio que invade a gente.

  Há um banquinho corrido, bom para sentar, colocado gentilmente sob a frágil parreira diante da casa. Pode ser uma cadeira, esta foi o tio Domingos Marceneiro quem a fez, o Inácio Cesteiro quem lhe fez dançar, entrecruzar, as tranças de palhinhas do assento para formarem uma rendinha apertada, quase uma mantilha como a que as moças levam pelas cabeças às missas no Domingo.

  Parou esta cadeira à pouca sombra da ombreira da porta da casa, logo abaixo da lista azul da pequenina janela da frente, buinho claro no assento, costas brancas a casar com a alvura da parede que lhe dá encosto. Os quatro pés a sustentarem um corpo robusto que segurou à vez avós, filhos,  netos, choros de amor e de dias fúnebres. Que estalou do sol a querer penetrar-lhe as frechas e da chuva a inchá-la como às laranjas, azeitonas, bagos de uva.

  Está viva a cadeira, como há vida na casa que a pariu, assente no chão da Terra que é um círculo onde se vive, se cresce, se morre e a intervalos se descansa. Cadeira onde deitei a cabeça no colo da minha madrinha quando já não pude suportar os laços apertados do vestido que me cingia a cintura no dia da minha confirmação; cadeira aonde subi para chegar ao ninho de andorinha entalado entre as telhas, um tosco punho fechado de barro de onde caíram três filhotes que de outro modo não voltariam para lá; cadeira de onde vi chegar tantas e tantas vezes o carteiro com as cartas escritas, sobrescritos pesados das saudades da Terra pelos de cá que tiveram de calcorrear o globo em busca de um dia voltar; cadeira onde sentada junto da Avó, aprendi o primeiro ponto, a primeira laçada da malha; onde descansei vinda de um qualquer baile numa qualquer juventude, infância, que merecem elas próprias assento cativo na memória dos dias; a cadeira onde namorei, chorei, sorri, ri sem parar, vivi...

  Uma cadeira que me deixou ser e que vive junto à casa, sendo dela mas ainda mais.
Dando aos da Terra a certeza calma, serena de que sejam quais forem as passadas, o dia, a duração da jorna, ela aí está, firme, eterna, quatro pernas e um assento onde o corpo repousará.
Crescerá.
Será Terra.

in https://goo.gl/images/Di23k1credit: arturpastor





quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Chove Terra

"Hello darkness, my old friend
I've come to talk with you again
Because a vision softly creeping
Left its seeds while I was sleeping
And the vision that was planted in my brain
Still remains within the sound of silence"
                                      
                                 Simon & Garfunkel, The Sound of Silence



Chove de rijo na terra. Chicotes de água açoitam as margens das ribeiras, os açudes ressequidos pelo abraço de brasa, opressivo do sol. Saltam, salpicam gomos cheios de água prenhes de arco-íris, espelhos transparentes do céu que os mandou.Vêm redondos, perfeitos como olhos de perdizes a invadir a planície e esparramam-se desenvergonhada e desordeiramente pelas fendas no solo, chegando ao seu fundo numa fusão infinita, cega e fundamental. 

  A Terra conhece água. Os que não são dela, dizem que não é assim. Não é verdade. Terra é água e dela vive. Em torno dela, isto é. 
Falta, abunda. Tira, dá. Destrói, cria. Com água se inundam os olhos de todas as Mães da Terra quando o peito se abre em sulcos como os do chão que pisam. Água é o que corre pela testa, por debaixo das boinas, lenços, de todos os Homens que não conhecem estações ou dias de cores diferentes. Água para parir, água para lavar, água para ungir, benzer, inundar de vida e de sagrado (e não é isto falar do mesmo?). 

  Água nas cantarinhas a saber a barro, tão fresca, tão renovada que se diria estar o dito utensílio em lugar de fonte jorrando água constante do centro da Terra. Água em baldes de lata atirados ao ar, desenhando curvas liquidas em redor das soleiras das portas que depois se esfregam com panos, vassouras até que brilhem muito mais que os astros e as entradas das vizinhas. Água para nadar, como se veio ao mundo, sentindo os barbos, bogas, achegãs roçarem as pernas, e os pés escorregando nas pedras musgosas a fazerem leito. 

  Chove com força, como um látego pesado no dorso da Terra. É tudo ou nada deste lado do rio. Este Sul que é mais sentido do que geográfico tem os extremos de um território inóspito mas apetecível; os desvelos de uma mãe carinhosa com mãos rugosas, ásperas mas com perfume de leite e mel, um toque de hortelã e poejo. Sul que sente ainda o cheiro do oceano e que se diz plano mesmo do seu ponto mais alto. Que deixa vir água do céu e a recebe como a um deus descido do Olimpo dignando-se a caminhar na Terra. 

  Só que quando chove neste Sul, é de verdade. Com uma intensidade, uma ânsia desconhecida noutras paragens. Uma vontade imensa de absorver a água toda que se não vier carregada, gorda, pesada, depressa desaparece na imensidão, nos vastos caminhos de terra da Terra.

  Lava-te pois Terra, faz lama nas ruas ladeadas de paredes brancas caiadas, abre as bocas dos ribeiros que as circundam e faz-lhes salpicos só de pirraça. Obriga as moças a calçarem as botas de borracha para irem à venda ou à missa, os rapazes a abrigarem-se no telheiro da escola ou os velhos a recolherem ao lar, por dentro do útero da cozinha de onde parecem jamais querer sair. Faz-te nova, avança. Lavra o teu chão e prepara-te para lançar as tuas sementes. Mais tarde as mandarás com beijos das abelhas nas flores, pelos bicos dos pássaros celestes a Terras fora de ti. 

  Sabes que é assim que se recomeça. Que se renasce. Água e Terra fazendo Vida. 


in: https://nit.pt/out-of-town/back-in-town/dark-sky-chuva-estrelas-alqueva
Créditos: http://www.miguelclaro.com/wp/ 

domingo, 6 de agosto de 2017

Laura e o Amor na Terra

      Eu não tenho filosofia: tenho sentidos... 
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é. 
Mas porque a amo, e amo-a por isso, 
Porque quem ama nunca sabe o que ama 
Nem por que ama, nem o que é amar...
Alberto Caeiro
  Às vezes Laura acordava com a sensação estranha e maravilhosa de que a manhã nascera para ela. Que, rebentando as frinchas das janelas, os intervalos do postigo e as dobras dos cortinados de renda vinha ansiosa, lamber-lhe o rosto, a manhã. "Sou tua" parecia dizer-lhe. "Toma-me e expande-me, transforma-me em dia claro, em invólucro da Terra."
Laura voltava a fechar os olhos e deixava-se usufruir um pouco mais, só um tudo ou nada, da languidez boa de se sentir amada, tocada de novo pela luz conhecida e perfeita da manhã.

  Janela aberta, portas em abraços para fora, Laura sorvia com cada poro, cada tira de pele o ar da manhã na terra. Que cheira a urze. A palha seca. A estrume. A dentes de leão e alfazemas. Cheira a roupa batida nas pedras da ribeira e a corar ao sol dos quintais. Cheira à canela e ao mel que se derretem por dentro dos bolos no forno de pedra na padaria.

  Cheira também a barro, namoro da terra com a água da chuva. E tem sabor. Sabor da poeira que se eleva dos caminhos, do ar metálico antes de soar o primeiro trovão ou dos restos de cinzas brancas do lar que se levantam e povoam os corpos, as línguas, fazendo lembrar que um dia, já foram brasa.

  Sentia Laura que a manhã lhe falava. Que lhe contava dos que foram e dos que estavam para chegar. De quem seriam os reis do baile da sociedade esse ano e da chegada do míldio à vinha do Monte Novo. Dos dias que se seguiriam e se mostravam inteiros aos olhos e aos ouvidos atentos de Laura que tantos já diziam ser virtuosa.
Sem compromissos reais com a Terra, Laura assumira no entanto uma ligação eterna, matrimónio indestrutível com o ar da manhã. Desde gaiata que ao levantar,punha um dedito no ar, fechava os olhos e tentava adivinhar a direcção do ar da manhã, o lado de onde viriam as novidades, o seguimento do dia pelo que conseguia ver primeiro dele com os olhos do coração.

  Ah o peito, o peito! Pudesse Laura expandir-se como os caminhos da Terra, lonjuras inexequíveis para os que sobre ela não caminham, seria pelo peito que a sua estrada começaria. Para Laura tudo era novo ou regenerado como os dias.No peito de Laura vivia Amor como vivia a luz da manhã, o ar fresco do orvalho e os tons dourados, roxos, vermelhos com que o seu mundo se erguia. Começar de novo. Ser nova todos os dias e os dias todos. 

  Acorriam a Laura todos os que de uma forma ou outra já tinham desistido. Ou de quem já todos haviam desistido. Começar, recomeçar. Tombar, levantar. Pedras, rochas, solos rugosos e secos a fazerem-se terra fértil, veios de vida com um nadinha de manhã sobre eles. Era tudo quanto bastava. E era o ar da manhã que os curava, dizia Laura. Ela própria um episódio confuso do Tempo que não sabia mais modo nenhum de lhe chegar, de a prostrar.

  Laura dava. E do dar, recebia e era abundante como a primavera e o sol da manhã. Também caía chuva. Muitas e muitas vezes colava-se o avental de Laura ao seu corpo perfeito, glorificando as suas formas, e ela sorria, satisfeita, dando graças pelo choro Divino que lhe permitia lavar, semear, colher, crescer, ser mais Laura. Outra vez começar, com as manhãs. Ser luz com elas. 

  Quarenta ciclos de doze meses de manhãs novas, mãos dadas, esperança orgulhosamente pendurada ao peito, morreram numa noite cerrada de um Inverno gelado. Não havia  estrelas, a lua escondera-se sob o nevoeiro cerrado e o corpo perfeito de Laura, cobrindo o espaço da cama, parecia ter o peito mais largo, os ombros expandidos, os ossos alargados, as narinas desesperadamente abertas. 

  Choraram por Laura na terra. Sabiam que a sua manhã não chegara e que nenhuma mais teria a luz que ela lhes emprestava. Calou-se pois o povo. Enviuvara a manhã.


por: https://www.facebook.com/RicardoZambujoFotografia/